IV. Defenestração, base jump de skate e balística - A Física dos lançamentos

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Você sabe o que é defenestração? Veja abaixo e depois leia o conto Defenestração, de Luís Fernando Veríssimo, para conhecer o significado dessa palavra.

Defenestração de um computador
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Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração. A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas.
Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussufrar no ouvido das mulheres:
— Defenestras?
A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas... Ah, algumas defenestravam.
Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.
Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era uma palavra cheia de implicações.
Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:
— Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata.
Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. "Defenestração" vem do francês "defenestration". Substantivo feminino.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela!
Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
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Aqui você não descobrirá o porquê da palavra defenetração (leia o conto inteiro, pois vale a pena!), mas explicações, exemplos e experiências desse e outros lançamentos. Esperamos que você por motivo algum queira defenestrar seu computador; pelo contrário, esperamos que se lance na imagens e palavras a seguir e, como elas, se divirta e aprenda com um assunto que parece sem graça, mas se mostrará muito interessante.

O arremesso de pesos é um dos muitos exemplos de lançamentos.

Muitos de vocês talvez já tenham estudado lançamentos em Física, mesmo sem lembrar ou entender. Mas com certeza o que você verá a seguir será diferente, entre outras razões, porque, além de muitos exemplos de lançamentos, você verá também como ele foi explicado, desde a Grécia Antiga por Aristóteles até Galileu. Então, para um um bom começo, um vídeo incrível: assista o skatista Bob Burniquist realizando um salto de base jump de 500 metros de altura depois de descer uma rampa de 12 metros, no Grand Canyon (Arizona, EUA).



Mas afinal de contas, o que a defenestração de um computador e o salto do skatista Bob Burnquist têm em comum? São exemplos de lançamentos, que foi pela primeira vez analisado corretamente por Galileu, em 1638, no livro Discursos e demonstrações matemáticas acerca de duas novas ciências, conhecido também simplesmente por Discursos.

  
Galileu (1564 - 1642) e a capa de sua obra Discursos e demonstrações matemáticas acerca de duas novas ciências, publicada na Holanda em 1638.


As duas novas ciências que o título do livro de Galileu se refere são a resistência dos materiais e o movimento local, cujos lançamentos são um exemplo. Apesar do estudo dos movimentos, seja de uma pedra caindo, de uma lança, ou dos planetas, ser muito antigo, tendo se iniciado mais de 2.500 anos antes de Galileu, a maneira como ele o faz é única e pioneira. Ele sabe muito bem disso quando escreve que
Vamos expor uma nova ciência a respeito de um tema muito antigo. Não existe na natureza nada anterior ao MOVIMENTO e, com referência a ele, não poucos e volumosos foram escritos pelos filósofos; apesar disso muitas propriedades dignas de serem conhecidas não foram observadas, nem demonstradas. 
Sobre os lançamentos, continua dizendo que
Foi observado que os corpos arremessados, a saber, os projéteis, descrevem uma linha curva de certo tipo; também é verdade que ninguém evidenciou que tal curva é uma parábola.
Assim, todos os lançamentos têm em comum o fato de descreverem uma PARÁBOLA. Veja de novo a foto do skatista Bob Burnquist depois de deixar a rampa.


A foto acima é o resultado da sobreposição de várias fotos em instantes sucessivos, conhecida como estroboscópica. Uma outra foto tirada da mesma maneira e também outro exemplo de lançamento é o movimento de uma bola de golf  no ar.

Fotos sucessivas do lançamento de uma bola de golf. A trajetória da bola também é uma parábola.

A parábola é a curva típica que todo o objeto lançado faz; você com certeza já ouviram falar dela na Matemática, pois a parábola é representada por uma equação de segundo grau (y = a.x² + b.x + c). Veja as imagens abaixo.

A parábola é uma curva que pode ser obtida a partir de um corte em um cone na transversal passando por sua base. Além dela, podem ser obtidas também de um cone uma hipérbole, uma elipse e um círculo, todas chamadas de secções cônicas.

No gráfico acima você vê três exemplos de parábolas, cuja forma geral é y = a.x² + b.x + c. Repare como os valores de a, b e c dessas parábolas determinam a abertura (mais aberta ou fechada), a concavidade (para cima ou para baixo) e o ponto que cruzam o eixo y.

E por que Galileu foi o primeiro a descrever a curva que o skatista faz depois de deixar a rampa e o lançamento da bola de golf? Na época, o interesse por esse movimento se devia à balística: o lançamento de balas de canhão, fundas, lanças e flechas de arcos. Hoje, ele é usado, por exemplo, no lançamento de mísseis. Esta é inclusive uma importante característica da Física, poucas vezes mencionada: sua relação com a arte da guerra. O próprio Galileu reconhece isso na abertura dos Dircursos através do personagem Salviati:
Salviati - Parece-me que a frequente atividade do vosso famoso arsenal, Senhores Venezianos, oferece vasto campo filosófico às inteligências especulativas e, particularmente, naquela matéria que se denomina Mecânica, visto que neste lugar se constroi continuamente todo tipo de instrumentos e máquinas por numerosos artesãos.
Podemos também lembrar que Galileu, além de estudar a balística, também aperfeiçoou o telescópio, importante objeto de vigilância militar.

Galileu viveu em uma época de considerável desenvolvimento da artilharia, com o arsenal de Veneza, que ele bem conhecia, como mostra o trecho acima, sendo um dos mais importantes do mundo. O arsenal era um estaleiro, onde se desenvolveu uma produção em série de navios de guerra, com cerca de 16.000 pessoas trabalhando capazes de produzir um navio por dia; além disso, era um grande produtor de armas de fogo. O desenvolvimento militar do arsenal de Veneza estava ligado ao seu desenvolvimento econômico desde o século XV: a cidade era um importante entreposto comercial de mercadorias do oriente que eram distribuídas por toda a Europa; no século XVII, era provavelmente a cidade mais rica do continente. Portugueses e espanhóis, querendo encontrar outras rotas comerciais com o oriente, chegaram à América; também por isso, os portugueses contornaram o continente africano.

   
À esquerda, a entrada do arsenal de Veneza e, à direita, uma galeaça espanhola, navio desenvolvido pelo arsenal de Veneza.

Das armas de fogo, o canhão é sem dúvida uma das mais importantes. Existem registros do uso de canhões desde o século XVIII, provavelmente inventado pelos chineses, os mesmos invetores da pólvora. A partir do século XV, aconteceu um grande desenvolvimento da artilharia, com as balas de pedras sendo substituídas pelas de ferro e os canhões construídos com ferro e cobre.

   
A catapulta medieval foi substituída pelo canhão; na foto acima, um acanhão holandês do século XVII. 

Surge, assim, um novo problema: do que depende a trajetória das balas de canhão e qual é exatamente sua trajetória de vôo? As primeiras respostas surgem no século XVI, quando o matemático italiano Tartaglia (1500 - 1557) publicou em 1537 o livro Nova scientia inventa, estabelecendo que o o alcance máximo de uma bala de canhão acontece se lançada a 45º.

A capa do livro de Tartaglia e uma de suas ilustrações.

Tartaglia descobriu que o alcance máximo de uma bala de canhão acontece se ela for lançada a 45º.

O desenvolvimento da artilharia foi tão grande que em todos os países ela foi incluída como parte integrante dos exércitos. Com isso, experiências sobre a relação entre o calibre e a carga, a relação do calibre com o peso e o comprimento do canhão foram sendo cada vez mais comuns. Nesse sentido, a primeira nova ciência que Galileu anuncia nos Discursos tem um importante papel: a estabilidade e a durabilidade das armas são problemas típicos de resistência dos materiais. 

Depois de Tartaglia, a balística tem um grande desenvolvimento com Galileu, que descobriu que todo e qualquer objeto lançado descreve uma parábola. Mas como Galileu chega a essa conclusão? Antes de respondermos essa questão, vale lembrar um desenho animado que marcou época: Pápa-leguas. As perseguições do Coiote ao Pápa-léguas sempre acabavam como o Coiote se dando mal, o que vocês veem nas imagens abaixo.




Nessas cenas, sempre que o Papa-léguas parava na beira do precipício, o Coiote continuava e, já no ar, parava de se movimentar e depois começava a cair. Agora, vejam de novo acima a foto do skatista saltanto da rampa.

Nessa foto, as flecham representam os movimentos do skatista na horizontal e na vertical. Vejam que a
flecha que aponta para baixo é cada vez maior, pois ele cai cada vez mais rápido.

Mais uma vez, reparem que mesmo depois de deixar a rampa, o skatista continua em movimento, se afastando da rampa (movimento na horizontal) ao mesmo tampo que começa a cair (movimento na vertical). Foi essa a explicação de Galileu há mais de 300 anos, que certamente deixaria o desenho animado reprovado em Física.

Apesar dessa explicação parecer simples e óbvia, na época muitos filósofos discordaram de Galileu. Isso aconteceu porque todos eles estavam acostumados com a Física de Aristóteles, segundo a qual um corpo não podia ter dois movimentos.

Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.)

Aristóteles classificou os mais diferentes movimentos em dois tipos: o movimento natural e o movimento violento. O movimento violento possui uma causa, por exemplo o movimento de lançamento de uma flecha (causado pelo movimento do braço do arremessador) ou de uma bala de canhão (causado pela explosão da pólvora). Já o movimento natural é definido em termos de lugares naturais: os corpos pesados, nos quais predomina o elemento terra, como uma pedra, têm como lugar natural o centro da Terra e por isso o movimento local natural dos corpos pesados é a queda; os corpos leves, nos quais predomina o elemento fogo, como a fumaça, têm como lugar natural o céu e por isso seu movimento local natural é subir.

Assim, se para Aristóteles, um corpo não podia ter uma combinação de movimentos, é exatamente a partir do movimento composto de queda e na horizontal que Galileu explicou os lançamentos. Veja abaixo uma animação do lançamento de uma bala de canhão.

Nessa animação, a bala de canhão realiza uma parábola: seus dois movimentos são em linha reta sempre para a direita por inércia e na vertical, primeiro para cima cada vez mais devagar e depois para baixo cada vez mais rápido.

Antes de Galileu, muitas foram as explicações que tentaram explicar os lançamentos. Na Idade Média, seguidores de Aristóteles descreviam a trajetória de uma bala de canhão segundo as imagens abaixo.

Na imagem à esquerda, a bala de canhão faria, primeiro, uma movimento em linha reta na transversal e subindo, para depois cair em linha reta. À direita, ao invés de cair em linha reta, a bala de canhão faria uma curva depois da trajetória retilínea. 

Por sua vez, Galileu provavelmente analisou o lançamento a partir de uma bola solta de um plano inclinado, como o da figura abaixo.


A partir dessa experiência, Galileu fez os seguintes esboços:






Galileu enuncia o que chama de movimento dos projéteis dizendo que se trata de um movimento concebido da seguinte maneira:
imagino que um móvel foi projetado sobre um plano horizontal livre de qualquer obstáculo (...) se movimentará sobre esse mesmo plano com um movimento uniforme e perpétuo, supondo que esse plano seja prolongado ao infinito. Se, ao contrário, supomos um plano limitado e situado a uma certa altura, um móvel que supomos dotado de gravidade, uma vez chegado à extremidade do plano e continuando seu curso, acrescentará, ao anterior movimento uniforme e indestrutível, a tendência de ir para baixo, devido a sua própria gravidade; origina-se, assim, um movimento composto de um movimento horizontal uniforme e de um movimento descendente naturalmente acelerado, que chamo projeção.
Nesse caso, como já vimos, ele conclui dizendo que esse movimento composto é uma semiparábola, usando a ilustração a seguir para comprová-la.

Repare que na horizontal as distância bc, cd de são iguais, pois o movimento é uniforme; agora, na vertical, as distâncias bo, og, gl e ln aumentam, pois o movimento de queda é acelerado. A composição desses dois movimentos, que Galileu chama de projeção, é a semiparábola bh.

Por causa do movimento composto dos projéteis e da independência dos movimentos na horizontal e na vertical, Galileu lança uma conclusão que foge ao senso comum:
se um canhão horizontal numa torre atira paralelamente ao horizonte, não importa se a carga de pólvora é grande ou pequena, de forma que a bala caia a mil jardas de distância, ou quatro mil, ou seis mil; todos esses tiros levam o mesmo tempo (para atingir o chão), e este tempo é igual ao que a bala levaria da boca do canhão até o solo se caísse diretamente para baixo sem qualquer impulso.
Veja a imagem abaixo que comprova isso.

Uma bola solta e outra lançada na horizontal chegam ao mesmo tempo no chão, como mostra a foto estroboscópica acima.

Toda a dificuldade da análise do movimento dos projéteis realizada por Galileu e contestada em sua época por muitos filósofos estava em que considerar que o movimento na horizontal continuava mesmo depois da bola deixar o plano. Isso, na verdade, é o que mais tarde veio a ser o princípio da inércia, formulado pela primeira vez por Descartes (1596 - 1650) e elevado por Newton (1642 - 1727) à primeira lei do movimento:

Todo corpo continua seu estado de repouso, ou de movimento uniforme em linha reta, a menos que seja compelido a modificar esse estado por forças imprimidas sobre ele.
O problema da inércia é que ela refuta os argumentos aristotélicos contra o movimento da Terra, que Galileu, Descartes e Newton defendem. Em seu Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano, publicado em 1632, Galileu usa o movimento composto para negar o argumento dos aristotélicos segundo a qual a Terra está parada; leia esse argumento abaixo.
Simplício - Se a Terra tivesse um movimento diurno de rotação, uma torre do alto da qual se deixasse cair uma pedra, sendo transportada pela Terra em sua rotação, já se teria deslocado de muitas centenas de jardas para leste durante o tempo de queda da pedra, e a pedra deveria atingir o solo a essa distância da base a torre. Também é mencionada a experiência em que se deixa cair uma bola de chumbo do topo do mastro de um navio parado, notando que ela cai ao pé do mastro, mas, se se deixa cair a mesma bola do mesmo ponto com o navio em movimento, ela cairá a uma distancia do pé do mastro igual a distância de que o navio se tiver deslocado durante a queda...

Salviati - Muito bem. Você jamais fez essa experiência do navio?

Simplício - Nunca fiz, mas certamente acredito que as autoridades que formularam o argumento tinham feito uma observação cuidadosa...

Salviati - ... você toma como certo sem tê-la feito... e eles fizeram o mesmo tendo fé em seus antecessores, e assim por diante, sem jamais chegar a alguém que o tenha feito. Pois quem quer que faça a experiência verá que ela mostra exatamente o contrario do que foi escrito, ou seja, que a pedra sempre cai no mesmo ponto do navio, quer ele esteja parado, quer esteja se movendo em qualquer velocidade que se queira. O mesmo vale para a Terra: nada pode ser inferido sobre o movimento ou imobilidade da Terra pelo fato de que a pedra sempre cai no pé da torre.
À direita, a primeira página da obra de Galileu. A figura da esquerda mostra os três personagens do Diálogo: Salviati (porta voz de Galileu e defensor do movimento da Terra e do sistema copernicano), Simplício (defensor da idéia aristotélica-ptolomaica na qual a Terra está parada e é o centro do Universo) e Sagredo (personagem livre, sem preconceitos, que se liberta da tradição aristotélica-ptolomaica).

Para os Aristóteles e seus seguidores, se a Terra estivesse em movimento a pedra não cairia no pé da torre, como mostra a figura 1. Porém, para Galileu, não importa se a Terra está parada ou em movimento, a pedra sempre cai no pé da torre, por inércia, como mostra a figura 2.

As implicações da análise de Galileu dos lançamentos, portanto, não são poucas, a ponto do movimento composto ajudar a refutar os argumentos aristotélicos contra o movimento da Terra. Assim, para os aristotélicos, um corpo não pode cair e ao mesmo tempo se movimentar junto com a Terra, o que para Galileu é plenamente possível. Graças a essa e outras idéias, Galileu rompe com a Física de Aristóteles e seus seguidores para fundar a Física clássica, tal como aprendemos hoje na escola.

Por causa da defesa de Galileu do movimento da Terra no Diálogo, ele foi condenado à prisão domiciliar perpétua em 1633 pela Igreja Católica.

A tela acima retrata o julgamento de Galileu.

A partir dos trabalhos de Galileu, Newton publicou uma imagem em seu livro Princípios matemáticos da filosofia natural, em 1687, que lançou as bases para os modernos lançamentos de mísseis e mesmo de foguetes espaciais.


A figura acima de Newton nos mostra que quanto maior a velocidade de lançamento, maior é o alcance do que é lançado. Na medida em que aumentamos a velocidade de lançamento de um projétil, uma hora o projétil consegue vencer a força de atração da gravidade e passa a orbitar a Terra; isso acontece a velocidade maiores ou igual a 11,2 km/s, ou 40.320 km/h, valor conhecido como velocidade de escape.

De tantos lançamentos, a região ao redor da Terra foi tomada por satélites, muitos dos quais não se usa mais e que acabou virando lixo espacial. Nem Galileu ou Newton poderiam imaginar isso, mas, com suas análises do movimento composto dos projéteis, ajudaram a tornar possível.


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